quarta-feira, 18 de março de 2009

A FERROVIA DO DIABO, de Manoel Rodrigues Ferreira


FERREIRA, MANOEL RODRIGUES. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 2005. 398p.

O colonialismo nasce de uma contradição: a superioridade de um povo/religião/tecnologia sobre outro e a necessidade de guiá-lo a um estágio superior. Para um grupo afirmar sua diferença, precisa se afastar. Para guiar outro, precisa aproximar-se dele. Esse choque nunca foi tão concreto como na história de uma ferrovia relativamente pequena hoje demolida situada nas franjas do Brasil e que ligava dois rios e dos quais tirou o nome.

A história da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré é tão inverossímil que só poderia ter sido inventada por um péssimo romancista. Um rio gigante, massa de água a cortar o centro da selva, chamado rio Madeira. O rio ainda com o nome de Guaporé desliza tranqüilo homens e barcos. Em certo momento, pula, e pula de novo e de novo. 400 quilômetros de cachoeira. Depois tranqüiliza, estrada líquida até o Atlântico. Dois países, Brasil e Bolívia, um com suas desprezadas bandas ocidentais e outro com suas desprezadas bandas orientais a dependerem de uma melhoria nesta passagem das cachoeiras para permitir tráfego para o oceano. No meio do século XIX alguém vem com a idéia: as mercadorias percorreriam o trecho encachoeirado de trem. Depois seriam embarcadas de novo em navios.

Só um problema: o lugar. Desconhecido ao completo: índios e piuns e carapanãs e cobras e anofelinos e a princesa e arquiduquesa e por que não verdadeira rainha do lugar, sua majestade a Malária. A selva naqueles tempos sem motosserra nem criação extensiva de gado apertava os rios e os homens. Data de 1722 a primeira passagem documentada, pelo lendário homem de meia-idade major Francisco de Melo Palheta, o homem que trouxe o café ao Brasil. Desde então mercadorias passavam, não sem algumas se perderem, e homens conduziam barquinhos pelas corredeiras, não sem alguns repousarem para sempre no fundo de pesadelos líquidos que ganhavam o nome de salto do Teotônio ou Caldeirão do Inferno.

Mas o surrealismo veio com a ferrovia. Engenheiros passavam apressados pelo rio, davam rápidas olhadelas no horizonte e faziam projetos que para serem obras de ficção bastava apenas o título. Com base em projetos onde só não se sabia a extensão, o terreno, as doenças os índios os riscos e os custos, homens eram jogados na selva. Começou em 1872. A Europa regurgitava de dinheiro e precisava aplicá-lo, mesmo em ferrovias que ninguém sabia com razoável segurança onde ficavam. Quatro construtoras tentaram. Nenhuma conseguiu, sendo que as duas últimas tiveram o talvez bom senso de sequer tentar com seriedade. O dinheiro não dava, o terreno cedia, os estômagos logo enjoavam de tanto comer conserva. Mas isso não seria nada se dentro de alguns dias o trabalhador não sentisse um forno na cabeça, de febre. Depois vinha a paralisia, começando pelas pernas e comendo o homem aos poucos. Era o que os gringos engenheiros chamavam de blackwater fever e que os romanos acharam que vinha de um ar mau, daí mal-aria. De cada dez homens, três morriam. Mais ainda ficavam inutilizados e as construtoras os demitiam.

O boom das bicicletas exigiu borracha, aquela região tinha muita e ressuscitou o interesse pela ferrovia, esporeado por uma guerra que trouxe o Acre ao Brasil. Num contrato que foi uma rosácea de roubos a construção acabou ficando com a figura sinistra do quase dono do Brasil, o multimilionário ianque Percival Farquhar. Em 1907 ele ganhou a concorrência através de um laranja. Ganhou muito dinheiro com a Madeira-Mamoré. Nunca teve a curiosidade de fazer turismo no local, entretanto. Mandou outros. Sua construtora logo se rendeu à realidade: os homens duravam três meses, não mais. Depois disso a maior parte estava inutilizada, outros já tinham escolhido as margens do Madeira como sua residência eterna. A solução era trazer mais gente. E vinham, em média 500 por mês, doentes novos que vinham substituir os doentes velhos.

E a ferrovia avançou, por quase 400 quilômetros e cinco anos. Ironia das ironias, quando concluída seu interesse tinha diminuído muito. A borracha baixara de preço e novas ferrovias chilenas e argentinas puxavam o tráfego boliviano para seus países. E ficou a ferrovia, até que o governo militar mandou liquidá-la, arrancar seus trilhos, queimar seus arquivos e vender as locomotivas como sucata. Felizmente o jornalista Manoel Rodrigues Ferreira pôde escrever este livro antes.

Hoje, gente interessada em preservação da história tenta salvar o que resta da Ferrovia, em grande parte motivados por este livro. Quanto às cachoeiras do Madeira, novos governos, novos empreiteiros a desejarem novos lucros querem afogá-las debaixo de barragens, uma obra denunciada como nova irresponsabilidade, dessa vez ecológica.

Fica a lição: o desconhecimento. Homens de fora, desinteressados na terra, colonizadores, a quererem lucro com ela. E a sofrerem ou fazer peões sofrerem a sua suave vingança, quer esta venha por febre alta ou algum desastre da ecologia.

De leitor para leitor
Livro: A FERROVIA DO DIABO, de Manoel Rodrigues Ferreira
Assunto/Personagem Principal: Estrada de Ferro Madeira-Mamoré

PARA QUEM ESTE LIVRO INTERESSA MAIS:
Curiosos sobre história da Amazônia
Interessados em histórias de viagens e aventuras
Quem gosta em geral de trens

O QUE VOCÊ PODE ESPERAR DESTE LIVRO:
Uma história bem seqüenciada, com poucos saltos.
Muita aventura de gente cortando mata virgem a facão
Escândalos financeiros
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QUANTIDADE DE HORAS DE ENTRETENIMENTO: 15 hs
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PODE SER LIDO na escrivaninha, ocasionalmente na cama. Exige certa atenção.
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PÚBLICO PARA AS HISTÓRIAS QUE VOCÊ CONTARÁ:
público feminino (histórias de sexualidade e família): muito pouco
público masculino (poder, política e economia): muita aventura de viagem e selva. Muitas revelações sobre como se fazem obras e contratos no país.
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PONTO FRACO:
O autor perde algumas dez páginas teorizando as causas do desenvolvimento industrial, o que não cabe num trabalho destes.



TRECHO

“Em Londres, todos os passos da operação financeira haviam sido minuciosamente estudados. Nenhum detalhe fora omitido. Tudo, mas sobre a operação financeira, bem entendido. Porque do terreno onde seria construída a ferrovia ninguém sabia nada. Absolutamente nada. Ninguém, até aquele momento, havia percorrido o terreno adjacente às cachoeiras, em toda a sua extensão, a fim de ao menos o conhecer superficialmente. Ninguém sabia o que se escondia atrás da pujante floresta amazônica que se divisava das cachoeiras do Madeira. Não se sabia se era terreno montanhoso, plano e enxuto, ou alagado. A ignorância sobre a zona que a ferrovia deveria atravessar era completa. Não se sabia nem qual a extensão ao menos aproximada que teria a futura estrada de ferro. Nenhum engenheiro boliviano ou brasileiro fora chamado para opinar sobre a construção. E naquele mês de janeiro de 1872, tudo na praça de Londres estava concluído, para ser dado início aos trabalhos da construção.” (p80)

Um comentário:

  1. Gostei demais de sua resenha. Fato curioso. Ao procurar análises sobre o imperialismo e a Madeira Mamoré nada se acha.
    Há uma tendência a se mitificar o interesse das potências colonialistas como se fossem brazucas.
    Estou bookmarkando este seu blog avelino. Parabéns e sucesso!

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